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sábado

Conto de Natal:o perdão



O andarilho parece meio deslocado, sente que o dia não é um dia qualquer, as frequências parecem não se encaixar, mas é normal, pois as conexões e resconexões são contínuas no ciclo evolutivo.
Não é todo dia que estamos bem, vivemos os altos e baixos que a vida nos proporciona como forma de crescimento.
Uma energia estranha vaga pela mente do andarilho parece que alguém quer se comunicar.
Mas onde?
Quem?
Por quê?
A caminhada continua, os pensamentos não se fixam, são ondas que vagam em busca do receptor perfeito, não é qualquer um que tem condições mentais para certas comunicações.
O calor é intenso, as pernas estão pesando, viro a esquina, ando um pouco, olho para a esquerda e vejo uma viela, e lá no fundo um barzinho de aparência humilde.
O andarilho anda como se guiado por uma força estranha, mas segue sua intuição. Logo chega ao bar, pede um copo com água, é servido por um senhor que aparenta uns 70 anos.
Enquanto toma a água percebe um homem conversando sozinho em meio a uma praça escondida naquele pequeno beco.
Termina o copo d’água e caminha em direção ao desconhecido, mas parece já estar conversando mentalmente com o homem.
Aproxima-se, e antes de cumprimentar o estranho, ele lhe fala.
Sente-se aqui que vou continuar a história. Você demorou muito a chegar, então vou ser breve, pois tenho outros afazeres.
O andarilho prefere não se manifestar, pois já vem com aquela voz no pensamento há quase meia hora.
O desconhecido continua sua historia, e o andarilho já sentado próximo ao homem ouve a tudo sem nada dizer.
Um preso em sua cela em uma noite de Natal vagava em seus próprios pensamentos, já era quase meia-noite do dia 24 de dezembro.
Arrependido e voltando no tempo mentalmente, pois foi em uma noite fatídica de Natal que ele, movido pelo álcool e pela paixão, matou um amigo de infância.
Estava tão bêbado que não deu conta de fugir, e seus familiares o amarraram e chamaram uma viatura da polícia militar. Não demorou muito o jipe chegou ao local, e ele foi entregue à polícia.
O andarilho apenas ouve, o homem parece falar para si mesmo, mas o olhar é fixo na direção do andarilho.
Como pode 20 anos depois tudo estar tão claro em sua mente?
Quanto arrependimento!
Foi o dia inteiro preparando as coisas para festa que iríamos fazer a noite.
Quantos amigos, a família toda reunida, mãe, pai, tios, primos e todos que conosco conviviam.
Agora eu aqui sozinho, já não tenho mãe nem pai, todos se foram e eu aqui na solidão da noite eterna do desespero.
O andarilho não sabe se o homem fala de si ou fala por outra pessoa.
E o desconhecido continua.
Minha mãe quando viva sempre me visitava, agora ninguém.
Minha mulher há muito se casou com outro, não sei se por amor ou por medo da solidão.
Dos meus filhos não me lembro de suas faces. Eram ainda todos tão pequenos, e a eles disseram que eu morri, para não carregarem a dor que lhes causei, e para não sentirem o abandono de pai.
Chove.
Uma chuva fina em um céu escuro, ao longe vejo uma luz, parece se aproximar.
Deve ser um avião.
As horas passam, a cadeia inerte.
Cheia de corpos, pois as mentes dos condenados vagam, vagam sem parar.  Os portais da mente são infinitos e universos paralelos se misturam em um mundo real.
Silêncio profundo, nem um simples rádio ligado, a angústia do silêncio liberta a mente no universo quântico, a mente errante vai à busca da fantasia do real.
Tudo ao nosso redor conspira as flutuações quânticas, são ondas criadoras sem regras.
A vida transcende e vaga por mundos desconhecidos, a mente faz a ligação, os gravitons que são partículas dimensionais colidem criando sistemas mentais perfeitos.
O mundo paralelo se funde com o mundo real, deixa de ser sonho e vira realidade.
O andarilho não entende como o homem que detém conhecimentos de linguagens universais possa estar ali em um banco de praça.
E ele continua sua história.
Os guardas não se movem, eles também são presos como nós, mesmo que temporariamente, estão longe de suas famílias.
Vejo um dos guardas bebendo alguma coisa, ele está longe, percebe que estou olhando em sua direção, quando fecho e abro os olhos, vejo que vem caminhando em minha direção.
Ele se aproxima, comenta sobre o vazio, pergunta o motivo de eu estar ali.
Pede que eu conte minha história.
Conto.
Ele baixa a cabeça.
Depois me diz.
Que tragédia.
O guarda me oferece uma dose de whisky barato que ele bebia, ele acende um cigarro me entrega.
Ficamos ali parados.
Ele me pergunta se arrependo do que fiz, respondo que sim e se pudesse voltar o tempo com certeza não o faria.
O guarda ma fala do arrependimento com palavras que não parecem sair do seu intelecto.
Ouço suas palavras. Mas me sinto perdido no pequeno espaço que vivo.
Ah, como minha vida corre lentamente.
Parece que voltei no tempo, como pode. Sinto o cheiro, a respiração de todos que estavam na festa, só não consigo me lembrar do que fiz, e tem horas que questiono se realmente fiz.
O que a bebida fez comigo.
O andarilho pergunta ao homem como foi o dia seguinte após sua prisão.
Acordei em um distrito policial, sujo, fedido, caindo aos pedaços.
E de lá fui para uma casa de prisão provisória, e depois de julgado e condenado vim para o presídio para o cumprimento de pena.
O andarilho sente o clima da prisão, o desespero, angústia, amargura, o isolamento com o mundo real.
E o desconhecido parece estar vivendo tudo aquilo, parece ainda preso entre dois mundos distintos, mas continua seu relato.
Mentes que vagam, espíritos que sofrem, aprisionados a corpos que não se movem em busca de experiências que venham a contribuir para uma próxima volta.
E que mesmo após a morte não consegue sair do suplício do remorso.
Sua face se transforma, ele parece ser um, e ao mesmo tempo parece ser muitos.
O andarilho ouve vozes que ecoam em seus ouvidos, mas não consegue se concentrar, as vozes vêm de longe. Alguém me ouve, então conte minha historia. Hein, conte a minha também, mostre aos que tudo podem o que eu jamais poderei fazer.
O desconhecido como se estivesse em transe continua seu relato e percebe que tem mais pessoas tentando se comunicar com seu ouvinte, e pede que o andarilho se fixe apenas nele que as vozes sumirão.
O andarilho ouve as vozes dizerem quase que em couro.
Não deixe que outros repitam meu erro.
O homem continua.
A meia-noite se aproxima, sinto o corpo enfraquecer, talvez seja a bebida barata, me lembro de que nunca vi o guarda que me deu a bebida e o cigarro antes, e os guardas que conheço não costumam agir com tanta bondade.
O sono domina meu corpo e minha mente apaga como uma vela que vai se acabando lentamente.
Sonho.
Um sonho bom.
Pareço ter voltado no tempo, as palavras de arrependimento ecoam em minha mente tomando conta do meu ser.
O cheiro da carne assando está em minhas narinas.
Escuto uma voz.
E minha esposa que me oferece uma latinha de cerveja.
Ela olha para mim e me diz.
Ei, tome a latinha de cerveja que você me pediu.
Ela está sorrindo, agradeço, mas não aceito.
Quero, mas não posso, ou se posso, agora não quero.
Isso foi o motivo da minha ruína, se estou dormindo meu sonho parece real.
De repente vejo o guarda da prisão participando da festa de Natal da noite fatídica, vou até ele e falo.
Ei, te conheço.
Ele olha em minha direção e me fala.
Você está delirando.
Fixo o olhar, e o que vejo é o homem que matei. Como não o reconheci antes? Olho em seus olhos e peço perdão.
Ele não entende.
E me pergunta.
Por quê?
Respondo-lhe.
Não importa, simplesmente me perdoe.
Ele sorrindo me abraça e me diz olhando em meus olhos, como se entendesse o que eu quis dizer.
E me diz. Eu te dou meu perdão.
A noite segue, estou entre o real e o imaginário. A música muda o ritmo e minha irmã me chama para dançar.
Danço, brinco. A noite segue seu curso, as horas passam lentamente, até que chega ao fim.
Vou embora para casa, que é bem próximo, apenas alguns lotes à frente.
Deito, teimo em não dormir, mas acabo vencido pelo sono.
O dia amanhece, céu nublado e escuro. Não quero abrir os olhos, mas não tem jeito, preciso saber onde estou.
Quando abro, vejo minha esposa, fecho e abro os olhos novamente, fico na cama.
De repente um cheiro de café, ela vem em minha direção e me puxa da cama brincando e falando da noite de ontem.
Tomo o café, volto para cama e durmo de novo. Acordo assustado, olho no relógio, já são duas horas da tarde.
Vou até o portão de casa, vejo os meninos jogando bola.
Viajo em dois mundos, não sei qual o real. Se a prisão ou minha antiga vida. O dia segue normal, vem a noite, durmo, acordo. Ou se estou dormindo acordado.
Tudo recomeça, fico cheio de dúvidas, o que é real. O que é imaginário.
Vivo os dois mundos. Sei o que fiz, me arrependi.
O andarilho então consegue entender, o homem ficou preso em duas dimensões distintas, o perdão verdadeiro do amigo fez o universo retroagir ao dia do acontecimento.
Mas a alma ficou aprisionada no sono eterno do remorso, o perdão deu uma nova chance, mas o homem não se perdoou e continua no suplício da reparação.
O homem vê que o andarilho entendeu os acontecimentos.
E fala ao viajante das múltiplas dimensões. Amigo, eu supliquei as forças supremas que me mandassem um anjo de luz para clarear meus pensamentos. Já faz algum tempo que espero pelo nosso encontro.
Agora me explique.
Será que estou tendo outra chance? deixo as coisas acontecerem, vou vivendo minha vida junto com minha família. Tenho medo de dormir e acordar novamente na prisão.
Passam-se os dias, passam-se os anos.
Vivo, simplesmente vivo, não sei se a vida se desenvolve apenas neste plano ou se em dois sistemas semelhantes ou equivalentes, pois se não posso afirmar também, não posso negar a possibilidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Um pagando a conta, e outro já com a conta paga. se duvido de mim mesmo e por que o que sinto não tem explicação, ao menos neste plano?
Se estiver sonhado quero continuar o sonho, se tive o benefÍcio do perdão, o amigo teve a vida de volta.
Se É possível não sei, e se for, agradeço. Mas me tire deste suplÍcio ou acabo ficando louco.
O andarilho fala como se guiado por forças superiores.
A resposta estÁ em você mesmo, se teve outra chance foi porque se arrependeu de coração. As vozes que tentam se comunicar estão em outra dimensão.
E o fato de ter recebido o perdão verdadeiro fez com que os juízes celestiais dessem uma nova chance a você.
Mas enquanto não se libertar do remorso vai viver em estado de loucura. caminhe em direção à luz, meu amigo, e siga em paz. E se fizer isso as forças supremas vão te dar energia suficiente para suas jornadas vindouras.
E se te deram a chance é porque você é uma engrenagem importante para os seres que te acompanham em seu caminho em direção à luz.
O homem, chorando, diz ao andarilho.
Meu guia, enquanto você seguia sua jornada neste plano, eu via sua luz transpor o sistema planetário e vir em minha direção. Mas quando estava olhando pela janela da prisão, te confundi com um avião.
Agora vejo em você a mesma luz que via quando olhava para o céu. Agradeço-te do fundo da minha alma, agora vou seguir em paz o meu caminho.
Vou aproveitar cada dia, cada minuto restante da minha existência guiando aqueles que seguem esta jornada terrena ao meu lado. Cuidarei para que sejam bons, e só façam o bem.
Para que nunca venham a pagar o preço que paguei por algo que fiz para prejudicar outro ser humano. Daqui para frente não praticarei o mau nem com atos ou palavras.
Obrigado, amigo! Agora sigo em paz essa jornada terrena.
O andarilho abraça o desconhecido, e, ao final, o reconhece como um filho em uma existência passada.
Os dois se despedem e o andarilho segue pensando.
A vida é assim, não julgue para não ser julgado, mas o universo abre suas portas aos seres que se arrependem de coração, pois a mágoa só fere aquele que sente, não atinge o outro, enquanto que o perdão beneficia os dois lados.
E assim o andarilho segue em busca da imensidão vasta dos mundos circundantes imaginando que não tem verdade real como não tem mentira eterna.
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