A criança tem dentro de
si a instabilidade que viaja entre a crença e a convicção de sua cultura em
formação. É bom, de vez em quando, sermos crianças. Não há abismo entre o
natural e o sobrenatural. Ao contrário, existe uma ligação imperceptível entre
nosso ego e o do outro. Mas não nos iludamos: somos completos estranhos a nós
mesmos. E o próximo é a abissal diferença.
Numa crônica passada
disse que ao amigo entrego a minha solidariedade total, menos as minhas
lembranças; estas eu guardo como tesouro no meu coração. É com elas que
encontro motivos para viver. Escrever é desamarrotar o passado, seja de um caso
antigo que já vivemos ou da experiência vivida na história de outros. Por
exemplo, um bom livro acende a criatividade que move os dedos no teclado. Uma
mentira de pescador também.
Mas é difícil, na
arrogância do supérfluo, viver a era do imediatismo delirante. Penso que o
cronista sempre acha uma brecha para criar um novo texto. Flaubert ensina para
“apontar sobre os objetos o aparelho de sua atenção e descobrir neles um
aspecto que não foi visto nem dito por ninguém”.
Um dia desses, penso
que há quinze anos, à noite, depois do jantar, no centro de uma roda com meus
netos e outras pessoas, contei uma história de onça.
Numa noite escura, à
beira do Lago Pium, enquanto esperávamos a janta feita pelo cozinheiro
Osvaldinho, inveterado pinguço, ouvimos passos quebra-folhas em volta do
acampamento feito de madeira e palmeira do lugar. Havia, além da luz de
lampião, a do fogão à lenha onde se cozinhava. O barulho fora do acampamento –
podia ser de um animal – começou a incomodar-nos.
Deve ser capivara,
disse um.
Acho que é caititu fora
da manada, disse o que preparava a caipirinha.
Que nada, disse o
cozinheiro tagarela, é uma onça esperando um de nós sair para mijar. Ela não
nos ataca por causa da luz.
O cachorrinho
vira-latas, perto do fogão, grunhiu fininho.
Até vejo os olhos
famintos da onça. Disse Osvaldinho com sua risada sem dentes.
Deve ter sido atraída
pelo cheiro de comida.
A onça pintada esturrou
forte, aterrorizando o acampamento. Silêncio na mata. Até os grilos pararam de
cantar.
Continuo o causo com os
olhos atentos da plateia.
Preparei-me para o
ataque da onça. Passei a mão numa faca bem afiada. Usei a lanterna para ver na
parte mais escura.
Nisso vi que a pintada
vinha correndo quebrando paus no peito. Estava furiosa. De repente deu um salto
longo como se seus pés tivessem molas. Queria pegar o cachorrinho do
cozinheiro.
Levantei a faca com a
ponta para cima. O couro da barriga foi partido do pescoço ao rabo. Quando
passava, no ar, Osvaldo segurou na ponta do rabo da bicha.
O couro, inteiro, ficou
e a onça foi embora sem a roupa pintada. Sumiu na mata escura.
Júlio disse, animado:
– Eu tava lá, né, vô?
O peão retrucou:
– Mentira danada.
Disfarcei o riso. Júlio
acreditara na história; senti-me um herói.
É belo ter a paixão de
criança.
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