Comecemos com uma fábula. Certa vez, o leão
invadiu um galinheiro e levou consigo uma dúzia de ovos e seis filhotes
recém-nascidos. Desesperada, a galinha tenta reaver sua cria. O leão, claro,
resiste e lhe responde que “trate, se quiser, de buscar seus direitos”. Ela
contrata o gavião como advogado. Recorrem ao Poder Judiciário, onde encontram a
coruja, abarrotada de processos, irritada com mais um processo igual a dezenas
de milhares de outros promovidos contra o leão. Desconfia da galinha, que deve
estar mesmo a aproveitar-se do processo para se beneficiar.
Às vésperas da audiência, o gavião sugere
aceitarem um acordo. Há risco de a coruja julgar o pedido improcedente e ainda
condenar a galinha a pagar honorários. Na audiência, a coruja, de péssimo humor
em função da constante cobrança por livrar-se de um serviço invencível,
pergunta se há proposta de acordo. O leão propõe a devolução de seis ovos e das
penas que sobraram. O gavião, interessado em receber imediatamente seus
honorários, sugere que a galinha aceite. Aos prantos, ela concorda. O gavião
ganha os honorários (dos seis ovos, ficará com dois) e a coruja liquida mais um
processo. Quanto ao leão, bem…
Com o incremento do número de processos
partir dos anos noventa (salto de cinco para vinte e cinco milhões de processos
na justiça brasileira em cerca de 10 anos, conforme dados do CNJ), a
conciliação (e outros “meios alternativos de solução de controvérsias”) se
torna a palavra do momento. Ela “pacificaria o conflito”, permitiria soluções
“mais adequadas” do que a via judicial, seria mais célere e livraria o Poder
Judiciário de sua excessiva demanda. Nas palavras da ex-ministra Ellen Gracie
quando do lançamento dessa campanha pelo CNJ: “Conciliar é legal.”
Pois esse é o discurso ideológico. A
característica de qualquer discurso ideológico é que persuade mascarando e
distorcendo, ocultando elementos fundamentais da realidade. É assim que o
boletim Justiça em Números do CNJ tem apontado anualmente para as reais causas
da implosão do Poder Judiciário e para a verdadeira natureza dos conflitos. Sua
característica fundamental consiste em envolverem partes em completo
desequilíbrio de poder, econômico e processual. É o que explica a existência de
“grandes litigantes” (melhor: gigantescos litigados), ocupando o polo passivo
de mais de 85% das demandas.
Os números mostram que bancos, prestadoras
de serviços (telefonia em primeiro lugar), operadoras de planos de saúde e a
Administração Pública são responsáveis pelo maior número de processos. A maior
parte dos litígios não consiste, ao contrário do que se diz, em brigas entre
vizinhos ou batidas de veículos, como o discurso hegemônico quer fazer crer.
Não bastasse, a explosão de litígios,
embora se diga ser um fenômeno internacional, não o é. O aumento do número de
conflitos, especialmente na Europa, ocorreu duas décadas antes. É muito menor,
possui natureza diversa e suas razões, mais diferentes ainda do que aquelas do
caso brasileiro, resultado da implantação da gestão social neoliberal entre nós
a partir dos anos noventa.
O custo da administração de um processo e o
risco da condenação são muito mais lucrativos do que o INVESTIMENTO na
qualidade dos serviços prestados, a revisão das cláusulas contratuais abusivas,
o cuidado na contratação ou a facilitação da rescisão. É mais vantajosa para a
Administração Pública a judicialização do que o pagamento de resíduos de planos
econômicos de ilegalidade notoriamente reconhecida pela Jurisprudência.
Perceba-se que o ponto crucial é o fator tempo: para a parte mais fraca, o
tempo é sempre desfavorável. O tempo do processo está sempre a favor da parte
mais poderosa: seja concluindo rapidamente por um acordo, seja delongando o
máximo possível. É justamente isso essa ideologia silencia, o que permanece
oculto no discurso da conciliação e da responsabilização do demandante pelo excesso
de litigiosidade.
Um banco provisiona o valor total de suas
derrotas judiciais, repassando-o para a taxa média de juros de suas operações
financeiras. A diferença entre a taxa de juros aplicada nas condenações
judiciais e aquela praticada na contratação das operações de crédito torna o
tempo processual um excelente negócio.
Mecanismo semelhante repete-se com a
sofrível qualidade dos serviços oferecidos pelas principais prestadores de
serviços públicos (e suas correspondentes tarifas), com as reiteradas negativas
de cobertura contratual dos planos de saúde e, por fim, com a insistente
preferência do próprio Executivo na judicialização.
Captura do Poder Judiciário, eis a palavra.
Num quadro como esse, há quem apresente algumas propostas. “Fortalecimento das
Agências Reguladoras”: alguém realmente acredita que, diante de um bloco de
interesses convergentes tão poderoso, isso realmente é possível? “Aumento do
número de juízes”: a solução para os números vergonhosos brasileiros (6,2 por
cem mil habitantes em São Paulo, contra 10 em Portugal e 24 na Alemanha)
esbarra com as restrições orçamentárias de sempre. “Boa gestão dos Tribunais
(especialmente informatização e recursos humanos)”: pois é o próprio CNJ que
afirma que já se chegou ao limite do possível e não há como fazer mais com o
que se tem.
“Aprovação da dimensão punitiva nas
indenizações”: como, diante das poderosíssimas resistências (os projetos
encontram-se devidamente engavetados no Senado)? “Reforma do Código de Defesa
do Consumidor”: “flexibilização”, ou seja, revogação dos mínimos direitos
protetivos, é o que se prende?
Solução? Sejamos realistas: não há. Mas o
certo é que o movimento pela conciliação, com seu discurso da “pacificação” e
sua crítica à “cultura da judicialização”, revela ser mais um véu ideológico de
ocultação da realidade e uma pseudo-solução.
Conciliar é mesmo legal? Em época de
administração neoliberal da vida social, é preciso prosseguir com a pergunta:
para quem?
Para quem, cara pálida?
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