Dois mundos: o físico e o
metafísico, o imanente e o transcendente
Ser ou não ser, é o desafio (shakespeariano)
que me faço ao concluir estes escritos. Trata-se de uma questão polêmica. A
vida é ambígua e nos desafia como a esfinge egípcia: decifra-me ou devoro-te.
Desde cedo, me coloquei entre dois mundos: o
físico e o metafísico, entre o imanente (energia interna) e o transcendente
(força superior), entre a matéria e o espírito, entre o finito e o infinito,
que, em suma, eu chamaria de terrenidade e espiritualidade.
Assim também nas dimensões do tempo, em que
a gente se coloca entre o passado e o futuro, apesar de muitos admitirem que só
existe o momento presente. Já que o presente existe e o tempo passa, o presente
vem do passado e o futuro vem do presente. Tanto que medimos o tempo que passou
e prevemos o que virá. Entre o finito do tempo (ou do espaço), a matéria que aí
existe é também energia viva e, portanto, infinita, como na física quântica de
Einstein.
A existência do ser é perene, diferente da
existência do não-ser (a matéria), que é efêmera. Tudo que é matéria acaba um
dia, já o afirmou Beltrand Russell. O espírito é o ser que transcende e não
acaba com a morte: passa do plano da terrenidade para o da espiritualidade.
Não se trata de religião. Trata-se de ser ou
não ser. A vida é, não apenas acontece. O que só existe como não-ser, acaba ou
transforma-se. O que existe como ser, não morre, não acaba. Antes de Einstein,
já afirmava Lavoisier, que na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se
transforma. Se no mundo dos fenômenos naturais é assim, não seria diferente no
mundo dos fenômenos sobrenaturais.
Fiz essa digressão para chegar ao tema
central da questão. Para tanto, vou contar duas historinhas ilustrativas.
Primeira historinha
Tinha eu ficado viúvo e sofria ao fazer o
inventário dos bens em comum com minha esposa. Há sempre divergência entre os
familiares quando se trata de dividir a herança. Ou quando, por trás disso, há
mágoas subjacentes. Um dia, ou melhor, certa noite, entre a faca e a espada,
invoquei o espírito puro daquela que fazia parte da minha essência,
rogando-lhe, como diria Camões – se vires que pode merecer-te alguma coisa, a
dor que me ficou da mágoa sem remédio de perder-te – Camões pedia a intercessão
da amada para que Deus o levasse a vê-la, eu só pedia para que não me deixasse
cometer, naquele transe, nenhum erro, nenhuma maldade, nenhuma injustiça.
No dia seguinte, ao chegar à universidade,
onde eu ministrava aulas de literatura, deparei com uma aluna que me trazia um
presente, como havia prometido. Abri o envoltório e arrebatou-me uma surpresa,
não só pela dedicatória – para ter a certeza da eternidade – mas sobretudo pelo
estampado título da obra: O livro dos espíritos, de Allan Kardec. Associei de
imediato o livro ao meu drama íntimo. Devorei-o de um fôlego, assim que cheguei
em casa. Poucos dias depois, surgiu um inusitado acordo no inventário. Como
queria Cristo – vendo os dois lados da moeda – a Deus o que é de Deus, a César
o que é de César.
Segunda historinha
Eu participava de um congresso de
italianistas na cidade de Cachoeira, na Bahia. Tinha levado, como dizem, um
cobertor de orelha. No hotel em que fomos hospedados, dominava o ar
refrigerado. Eu, alérgico. Recorri ao gerente. Único jeito, se eu quisesse, era
me transferir para um único quarto, chamado quarto escuro, sem conforto, um
tanto isolado, no plano superior. Por que não? Lá me instalei com a musa gentil
daqueles dias (e daquelas noites).
Alta madrugada, acordei sobressaltado.
Acordei não – acordou-me alguém, puxando-me pelo pé. Acendi a luz, não vi nada.
Voltei a deitar-me (a companheira dormia) e admiti que tinha apenas sofrido um
pesadelo. Algum tempinho depois, novo puxão, um solavanco – alguém me empurrava
para fora da cama. Acordei trêmulo. Acendi novamente a luz. Rezei. Passei o
resto da noite em claro.
No dia seguinte, ao café da manhã, em volta
da mesa, os colegas tinham tanto repertório quanto apetite, tantas curiosidades
quanto guloseimas. Alguém me perguntou se tinha visitado o cemitério. –
Cemitério? que pergunta estranha – Sim, aqui no hotel, que fora convento de
freiras, tem um cemitério interno. Ali, ao longo daquele corredor fechado. Não
indaguei nada: quis logo ir visitar os túmulos. Ficavam exatamente embaixo
daquele quarto do sótão, onde me agasalhara. E a cama que me cederam pertencera
a uma freira.
Eu, que tive formação católica, depois
passei falaciosamente a ser ateu e comunista – como era moda entre os
intelectuais de minha época – agora, fazer o quê? Como não acreditar nas
manifestações dos espíritos? Daí para cá passei a acreditar que a morte é nossa
realidade maior, no sentido de que é por meio dela que passamos para o plano da
espiritualidade, já que não o vivemos plenamente na terrenidade. Hoje acredito
na essência perceptiva e na ubiquidade dos espíritos: nossa ponte entre a
terrenidade e a espiritualidade.
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